quarta-feira, 21 de março de 2007

"Modinha" e perdas

Em uma conversa ontem com meu noivo, ele me contava sobre um trabalho da faculdade dele (bacharelado em música) em que teria que levar uma música que considerasse “sublime”. Eu, toda ignorante e sem nunca ter adentrado no mundo da estética, ri do termo que ele usou: “Como assim, ‘sublime’??”. E numa explicação simplificada sobre sua aula de estética, ele me contou que Kant dividia as coisas em 2 categorias: o belo e o sublime. O belo seriam as coisas grandiosas, como as cataratas do Iguaçu, por exemplo. E sublimes são as coisas que causam algo mais em nós, vai além da grandiosidade, e que pode até ser diferente de pessoa para pessoa. Daí começamos a pensar em que músicas poderiam ser consideradas sublimes...
Elegi uma, que gostaria de deixar aqui registrada:

Modinha (Tom Jobim/ Vinícius de Morais, 1958)
Não, não pode mais meu coração
Viver assim, dilacerado,
Escravizado a uma ilusão que é só desilusão
Ah, não seja a vida sempre assim,
Como um luar desesperado
A derramar melancolia em mim, poesia em mim
Vai, triste canção,
Sai do meu peito e semeia a emoção
Que chora dentro do meu coração


(Clique aqui para ouvir a versão cantada por Elis Regina. Se você tem anti-popup, segure a tecla Ctrl ao clicar!)

Não só melodia e harmonia desta música passam um sofrimento profundo, como também a própria letra fala disso. Desconheço a mágica de Tom e Vinícius que faz com que esta “triste canção” saia do peito deles e semeie em nós, ouvintes, esta emoção tão pungente eles sentem (ou dizem sentir... Já dizia Fernando Pessoa que o poeta é um fingidor!) e que chora dentro do coração deles... Fico arrepiada TODAS as vezes que ouço esta música! Mas poderia falar um pouco da própria emoção cantada na música.

A canção nos fala de um sentimento de dilaceramento, muito freqüente em situações de perda, pela morte ou não, de pessoas, situações ou “coisas” (num sentido mais geral, porque sabemos que não é só às pessoas que nos apegamos...) que amamos. Nestes casos, a sensação de que aquilo que perdemos não existe mais dentro de nós causa a típica sensação de vazio, como se um pedaço mesmo de nós tivesse sido tirado junto com aquilo que perdemos – por isso, fica “dilacerado” – e vem então o conseqüente desespero que geralmente acompanha. Parênteses: é comum que poetas, compositores, artistas em geral fiquem mais sensíveis e passem a produzir mais nestes momentos de dor profunda – “a derramar melancolia em mim, poesia em mim”...

Daí, temos que passar por todo um processo, que costuma durar mais tempo do que as pessoas gostariam, que os psicólogos chamamos de “elaboração do luto”. Quando esta elaboração ocorre de maneira saudável, este “buraco” é aos poucos preenchido por um sentimento que conhecemos como saudade, que seria mais ou menos como uma possibilidade de rememoração carinhosa dos momentos de afeto que passamos junto com aquilo que perdemos. E chega, enfim, o momento em que aquele vazio, aquele dilaceramento já não existe mais!

Existem, claro, outras formas de se lidar com as perdas; mas eu considero esta que descrevo a forma mais natural e saudável, porém, não a mais fácil, já que se trata de um loooooongo processo. Não é possível, no entanto, que escolhamos conscientemente como queremos lidar com uma perda; isso depende de o que é possível que façamos e sintamos num dado momento de nossa vida! Mas com certeza, a maneira de lidar com isto pode ser modificada através de uma boa terapia!

Gostaria de deixar claro que esta interpretação que faço desta música não esgota todos os sentidos possíveis de serem dados a ela. Isto que escrevo é, antes de tudo, um convite a abrir nossos olhos, ouvidos e, principalmente, nossa mente, para sentir o que cada pedacinho do mundo ao redor nos causa, e sobretudo, o que a arte nos causa. Acho que todos temos muito a aprender com a arte!

PS: Coloquei aqui embaixo um vídeo do Coral Belas Artes e Sesc Vila Mariana cantando Modinha na peça Orfeu da Conceição, da qual fiz parte.

4 comentários:

Carlos Nakamura disse...

Oi, Thatá!

Tem um texto do Winnicott em que ele fala sobre o destino do objeto transicional. Ele apenas especula, mas é muito bom. Para ele, nossa ligação com a arte pode ser um desdobramento dos já abandonados fenônemos transicionais. Assim, uma música que nos toca profundamente, e que por isso se torna "sublime", cria uma zona de ilusão entre artista e público que repete aquela que havia entre a mãe e o bebê, na época em que este último acreditava criar o mundo a sua volta. Acho que é por isso que a gente às vezes sente que uma determinada canção ou poesia de um artista famoso poderia ter sido feita pela gente. rs...

Gostei do começo de blog!
Parabéns!

Carlinho.

Anônimo disse...

Querida Thatá, que bom você escrever, expressar seu gênio, jeito de ser e pensar: bem-vinda!
Olha, falando de "Modinha", de Tom e Vinícius, Chico, etc., a gente tem que admitir que não vai surgir nada igual ou melhor. Há um luto cultural, no Brasil e no mundo. Veja na música: se uma te prende a atenção e emociona, pode apostar que é regravação. Culpa da globalização que leva a vida aos trambolhões, onde tudo é urgente, competitivo, ultrapassado... Não há qualidade sem serenidade.
Você falou do apego no amor, inevitável "gana" pelo ser amado, que certamente surge da certeza doída de que nada - e nunca - é para sempre.

Anônimo disse...

o sublime arrebata.. leva a onde ainda não se foi.. deixa nos sem fala.. Seja sol ou chuva

Bjs drefs

Flávia (Tiazona) disse...

Eu te amo. Música de Chico buarque.
Sublimes frases como estas....
Como... se na desordem do armário embutido, meu paletó enlaça teu vestido e o teu sapato ainda pisa no meu.
Se nós....nas travessuras das noites eternas, já confundimos tanto as nossas pernas, me diz com que pernas eu devo seguir...

Há! Tem um cara... Gélo Andery é o nome dele. Também faz algumas frases sublimes. E ele nem precisa cantá-las!

Adorei o blog Taci. beijo!